domingo, 4 de julho de 2010

Outros lados da verdade sobre a lucidez

Pus o coldre vazio sobre a cômoda, perto da luminária acesa pra iluminar meus gestos e garantir que nada saísse errado. O revólver, pus abaixo do queixo, o dedo indicador pus no gatilho à espera de uma ordem do cérebro para o disparo derradeiro. Um ato extremo talvez fosse a melhor opção para alguém que passou toda uma vida atrás de atos calculados, precisos e sem a menor graça, por conseguinte. E nada mais extremo do que a morte. Minha atitude mais inusitada talvez tenha sido ir ao trabalho com um par de meias de cores diferentes, pois perdera uma noite de sono após ler um livro sobre ocultismo. Foi terrível minha perturbação com meu primeiro atraso na vida.

Jamais havia chegado tão perto de uma arma de fogo, não conhecia a sensação de poder que este objeto carrega consigo, nunca consegui compreender o motivo da história de amor entre os Homens e o tiro até então. Era como se eu fosse o assassino de outra pessoa que não eu mesmo. Que controle pode ser mais absoluto do que o controle sobre si? Quantas pessoas podem dizer que têm tamanho controle, tamanho poder? Muito poucas. Era como se nada pudesse ameaçar a integridade do meu corpo, era quase como sentir tesão e creio que não seja incomum ter sensações contraditórias quando se está diante do momento mais importante da sua vida. Por outro lado, um tremor percorreu toda a minha espinha ao toque do cano em minha mandíbula. Não escolhi trilha sonora, como já é clichê nesses casos, nem deixei uma carta de despedida que justificasse minha partida, bem como também não estava chapado, pelo contrário, estava completamente lúcido. Estava completamente lúcido como nunca estivera ao longo destes anos que esqueci de contar, mas pra quem sempre teve tudo sob controle, uma morte controlada seria mais um passo óbvio, uma expressão esperada de uma insatisfação que eu não sentia, mas que as outras pessoas sentiam em mim. De qualquer forma, eu não pensei em nada disso na hora.

Mantive os olhos fixos no espelho durante todo o procedimento e decidi que já era tempo de concluir meu objetivo, pois tenho mania de ficar divagando, explorando todos os meus pensamentos ao máximo, descobrindo o máximo de possibilidades de cada afirmação e, com isso, temia que pudesse começar a questionar o domínio que tinha da situação. Foi no exato momento em que decidi puxar o gatilho que conheci Mahatma Gandhi. Percebendo minha expressão transformada pela surpresa, ele aproximou-se com aquela cara engraçada só dele, de pai que sabe quando o filho quer fazer merda mas finge que não sabe e disse, com aqueles olhinhos apertados e o tom ameno e seguro que só alguém iluminado pode ter: O problema desse mundo está no vazio dos costumes, valores e ideologias; combate-os com os valores que teu coração conhece tão bem, escreve teu livro, que ele há de florescer em almas quais a tua e cair como uma bomba sobre as cabeças desses merdas, e eles ficarão expostos em suas fraquezas. Agente laranja, conhece? E sorriu. Após alguns poucos segundos de reflexão, consegui responder que sim, eu sabia o que era o agente laranja, usado no vietnã pra expor os inimgos desfolhando as árvores e que aquele filhodumaputa não era Gandhi, pois o verdadeiro guru indiano jamais falaria palavrão e não depreciaria um semelhante por mais nojento que fosse e avancei de arma em punho, pronto pra arrancar aquele sorriso babaca da cara do impostor, que para meu completo desarme transfigurou-se no Führer e, tomando o revólver das minhas mãos, pressionou-o contra a têmpora direita e desabou diante de mim como se jamais houvesse sido vivo. Não havia sangue nem expressão de dor em seu rosto, apenas o sorriso estúpido de Gandhi permanecera.

Talvez seja desnecessário dizer que fiquei extremamente transtornado com o ocorrido, mas realmente perdi a calma que tinha até então. Não sei se pelo tiro ou os gritos que provavelmente dei, surgiram dois rapazes que me contiveram e me fizeram tomar algumas pílulas que me acalmaram. Agora, nesse lugar onde estou, não sei dizer se puxei o gatilho, não sei onde estou e permaneço confuso. Já não sei dizer se sempre tive uma vida controlada, previsível.

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